The Americans: o último homem e a sociedade da perda

*Willian Casagrande Fusaro

** Imagem em destaque: divulgação/FX

Depois da virada histórica, política e econômica representada pelo neoliberalismo nos anos 1980, não por acaso diagnosticada pelo intelectual nipo-americano Francis Fukuyama¹ como “o fim da história”, as preocupações com o comunismo praticamente sumiram do radar do Ocidente capitalista. Não era para menos: em pouco tempo não haveria, para a burguesia Ocidental e seus representantes no poder político, outro lado com o qual se preocupar. O bloco socialista ruíra; a Alemanha se reunificara, sob gritos da juventude que atacava, a duras marretadas, o Muro de Berlin; a Rússia, antes símbolo da resistência ao avanço do modo de vida capitalista, entrava em uma tenebrosa era de ultraliberalismo, que levou parte de sua população já massacrada com o fim da planificação econômica a níveis alarmantes de desemprego e fome. O “homem unidimensional”, teorizado por Herbert Marcuse² 30 anos antes, consumar-se-ia em um sujeito vivente na sociedade administrada do capitalismo sem oposição.

É sob esse pano de fundo – ou melhor, um pouco antes dos “finalmentes”, no processo em que a derrocada se consuma – que se desenrola o enredo de The Americans (2013-2019), série produzida pelo canal FX. A série conta a história do casal Philip e Elizabeth Jennings, proprietários de uma agência de viagens em Washington que atuam como agentes duplos: são espiões do Comitê de Segurança do Estado Soviético (KGB). Philip e Elizabeth, russos e comunistas, matam, torturam, sequestram, transam e ludibriam, com todas as armas que a luta de classes permite, suas vítimas para conseguirem informações para a “Central”. Ambos escondem de todos sua condição, inclusive dos filhos, o máximo que podem. Seus nomes reais ficam encobertos boa parte do tempo.

Sem parentes ou amigos, levam uma vida insuspeita, até que topam com o vizinho recém-chegado à vizinhança Sean Beeman, agente do FBI lotado no setor da contraespionagem. O incidente incitante, logo no início da série, nos traz muitas dúvidas: estariam os Jennings em risco ao encontrarem um sujeito que é pago para vigiar os “ilegais” (como os soviéticos são designados na série)? A série, de modo muito inteligente, não deixa a trama se desenrolar tão rapidamente. Porém, em seis temporadas, não se salvam nem a maioria dos personagens e nem os regimes políticos que defendem – voltando a Fukuyama, não se salva, tampouco, o “último homem”. The Americans é uma série sobre perdas, todas as perdas possíveis, da ideologia comunista à manutenção do “way of life” cínico do capitalismo americano como solução para o debacle inevitável que nos enfiaria na “pós-humanidade”, segundo o filósofo Fukuyama.

Uma das primeiras perdas visíveis para o telespectador é a da ideologia comunista. Com o passar dos anos, vai ficando mais evidente para os Jennings que seus afazeres são duvidosos e suspeitos. Philip funciona, nesse sentido, como um filtro de moral, questionando o porquê de ter que acabar com muitas vidas e enviar várias e várias pessoas, muitas delas boas e inocentes, para o degredo na fria Sibéria, sem ao menos questionar seus superiores, também cumpridores de ordens da União Soviética. Já Elizabeth comporta-se como o soldado soviético leal, na maioria das vezes. Cumpre o que viajou quase 8 mil quilômetros para fazer, nada mais, nada menos. Felizmente, como em todo bom roteiro, as coisas começam a complicar: nada é tão “preto no branco” quanto parece. Por trás dos espiões impassíveis, existem humanos que sofrem por suas decisões. “São eles que mandam, mas nós quem fazemos. Sempre”, diz Philip, em um dos episódios.

Outra perda significativa é a das relações sociais. Laços de amizade, coleguismo, amorosos: praticamente tudo se esfarela perante à gigantesca tarefa imposta pela Guerra Fria a todos, independente do lado em que estejam na guerra. Casamentos arruinados, relações com os filhos estremecidas (o casal de filhos Paige e Henry Jennings), relações entre amigos destroçadas. Beeman é o personagem modelo nesse sentido. Sagaz, arguto e exemplar agente, perde cada um dos membros pelos quais se importa, um a um, da esposa com quem está casado há duas décadas e filho único ao melhor amigo. O “último homem” se torna, literalmente, um solitário sobrevivente agarrado em seu trabalho, o último baluarte do dever moral, sem o qual nada lhe resta.

Imagem: divulgação/FX

A URSS, o gigante com pés de barro em lenta decomposição desde o episódio piloto, aparece como um titã que a todos comanda, por ordem da “central”, uma espécie de “mente de colmeia” que governa os agentes da classe S infiltrados. A rígida manutenção do poder político no interior da KGB é mostrada à exaustão com as aparições dos ótimos personagens coadjuvantes da Rezidentura (Oleg, Nina, Arkady Ivanovich) e outros espiões tutores (Gabriel e Claudia, em especial). Os casos nos quais os protagonistas atuam, infiltrados e disfarçados, são complexos e desembocam em finais trágicos, nauseantes e despedaçantes. Muito até para quem se empenhou por décadas em trabalhar para a “mãe Rússia” sem pestanejar. Afinal, é uma guerra feita de muitas batalhas que não admitem hesitações.

Continuando com as perdas, outra significativa é a perda física do socialismo, uma derivação da perda do horizonte ideológico. A série evidentemente não poupa críticas ao regime considerado implacável de Brejnev, Antonov e congêneres. Desde o nítido contraste com a transição de cenas entre Washington e Moscou, nas quais as cores vibrantes, quentes e alegres dos parques e quadras de basquete lotados de crianças e jovens dão lugar a tristes e frias avenidas cobertas de gelo e tenebrosos calabouços de prisões siberianas, temos uma exposição fina e competente do anticomunismo. Longe da defesa do regime soviético em sua inteireza, é preciso lembrar que pouco se diz, em tom elogioso, de um conjunto de nações que salvou o mundo do nazismo e do fascismo (como repetido pela “fanática” Elizabeth à exaustão nos 75 episódios), passou pela fome por décadas e insistiu em erigir, contra tudo e contra todos, outro modo de viver, enquanto a humanidade caminhava para a unicidade alienante do capital, relembrando Marcuse (que pouco poupa a União Soviética nesse processo, aliás). Não há muitas belezas soviéticas em The Americans.

Porém, as contradições são muito bem postas em ambos os lados da cortina: critica-se a moral burguesa, a representação da mulher na machista sociedade capitalista, a repressão e o autoritarismo, a desilusão provocada pela marcha implacável da burocracia pela eliminação das diferenças internas no Partido, na KGB, da Rezidentura. Mas, condenando o socialismo real à lata de lixo da história, The Americans não “salva” o capitalismo. Sua riqueza está, enquanto um produto cultural massivo, em não sucumbir às dicotomias que empobrecem qualquer estória. Tudo é muito mais complexo do que o binômio “capitalismo/socialismo” nos faz crer. Por outro lado, se ninguém se salva, não há um apontamento para o futuro. A história trata de punir a todos indistintamente.

A Guerra Fria se desenrola dentro da casa dos Jennings, entre os jornais matutinos com cenas da Guerra do Afeganistão e declarações dos presidentes americanos. O casal discutindo “trabalho” em casa é muito similar a uma família formada no seio da sociedade burguesa, que, entre uma mordida e outra de pão com manteiga e um gole de café, comenta o que tem de fazer no dia – ou, antes de dormir, o que fez – antes de levar os filhos para a escola. Os dois, de início apenas um casal “fake”, forjado para a espionagem, dividem agruras e problemas como um casal normal, inundado de cotidiano. Eles brigam, reatam, brigam de novo, reatam novamente. Transam, amam-se, odeiam-se. Têm discussões inconclusivas e estapafúrdias como qualquer casal.

Os dois, sem saber, tentam administrar juntos todas as perdas que os vão despedaçando por dentro, episódio a episódio. Perdas físicas, de paixões revolucionárias, de identidade e, por fim, perda de uma vida trivial, que nenhum dos dois conseguiu viver “em casa” – não por acaso, para se contrapor ao sentimento constante de perda, os russos soviéticos da série se referem à URSS como “casa”. Eles devem ser constantemente lembrados de que aquele lugar não os pertence, ainda que seja somente o que têm em mãos e o que levam em suas memórias. 

“Eu minto sobre o que faço, não sobre o que sou, diferente de você”, ressalta um agente secreto israelense a Philip. “Qual é o seu nome?”, pergunta novamente. Sem resposta. “Você é um monstro. Não há humanidade em você. Onde quer que tenham lhe treinado, tiraram isso de você. Seria melhor estar morto”, diz outra vítima, em prantos, ao seu carrasco soviético, já interpelado por uma série de pensamentos semelhantes sobre sua vida: “essa vida que vivi até hoje não me pertence, pois, a minha vida eu perdi”. A escassez de flashbacks em grande parte da série, sobre a vida pretérita dos espiões (que começaram muito cedo na profissão, praticamente sem escolha), é um atestado desse enorme vazio de memórias.

Ainda que com as limitações que um drama histórico da Indústria Cultural traz consigo, The Americans tem o grande mérito de entrelaçar uma complexa trama política de modo impecável com dramas pessoais e humanos. “Você acha que me matando está fazendo algo melhor pelo mundo? Se você acha, isso é o que as pessoas ruins dizem para justificar as coisas que fazem”, diz, em um dos pontos altos da série, uma das personagens antes de morrer a um de seus carrascos soviéticos. Para além do mundo bipolar, as misérias e alegrias não saem de cena jamais. Vejam The Americans e tirem suas conclusões.

*Willian Casagrande Fusaro é jornalista, músico e mestre em Comunicação pela UEL.

Referências

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco. 1992

MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia na sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro. 2015 

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